Naquela amostra de pacientes, quantos eram brancos? Quantos eram “negros” ou “pardos” ou “orientais”? E por que nos preocupamos em coletar esses dados e reportá-los?
Os conceitos de raça e de etnia vêm evoluindo na pesquisa científica internacional, especialmente depois do advento do projeto Genoma, em que o conceito de raça foi abolido do ponto de vista biológico em humanos. Grupos com diferenças ditas “raciais” não são geneticamente diferenciados: 99,9% do DNA humano é igual para todos. As características físicas que diferenciam “raças” resultam de um número minúsculo de genes que não têm a ver com comportamento ou susceptibilidade a doença.
No entanto, ainda são publicados, todos os dias, artigos na área médica — e na área ortopédica — falando em “pacientes brancos”, “caucasóides”, “orientais” ou “afro-americanos”, misturando raça com etnia, misturando muitos grupos étnicos num mesmo termo (japoneses, mongóis, coreanos, chineses são todos “orientais” ou “amarelos”?) e misturando também razões biológicas (por exemplo, maior incidência de hipertensão entre negros) com razões sócio-econômicas (maior propensão a ter baixo poder aquisitivo e uma dieta inadequada entre negros). A expectativa de vida de um imigrante, por exemplo, pode ser menor que a de um cidadão nativo de um país simplesmente pelo fato de ele ser um migrante, e não por pertencer a uma dada raça ou etnia. Assim, enquanto raça e etnia são freqüentemente usados como “marcadores” ou “indicadores” de outras características sociais (incluindo o acesso a cuidados em saúde), perpetua-se o uso inadequado desses termos.
No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) definiu, nos últimos censos, que o indivíduo se auto-declare como sendo da raça branca, preta, parda, amarela ou indígena. Também nos Estados Unidos, o indivíduo é questionando sobre suas origens, sendo que pode marcar mais de uma. Essa prática de auto-declaração é considerada mais adequada do que a categorização do indivíduo pelo pesquisador. Ainda assim, muitas diferentes origens (como de vários países europeus ou asiáticos) podem precisar ser agrupadas ao fim da análise estatística nas pesquisas biomédicas, mesmo que o questionário traga perguntas abertas a respeito de raça e etnia. No Brasil, isso é ainda mais relevante: como categorizar (inclusive para fim estatístico) um paciente filho de judeu casado com japonesa? Ou filho de chinês casado com italiano? Como “branco”?
Perguntar a raça apenas como um reflexo automático (“já que estamos na frente do paciente, vamos aproveitar”…) pode se revelar uma perda de tempo, cientificamente falando, se nenhuma questão clínica estiver claramente relacionada com essa característica do paciente. O fato de que se tem disponível o dado “raça” num banco de dados pode não ser razão suficiente para cruzar essa informação com os desfechos clínicos de interesse ¾ e com muita frequência esse cruzamento se revela infrutífero em termos de relevância clínica. Se a raça está sendo usada como um marcador para outra variável mais difícil de medir (como “acesso a transporte”), deve-se justificar claramente essa escolha. Afinal, perguntar diretamente sobre a renda, acesso a educação ou ao hospital pode ser mais proveitoso do que pressupor que, numa dada localidade, “não-brancos” são maltratados (num bairro como o da Liberdade, em São Paulo, a categoria “não-branco” incluiria japoneses? Chineses? Coreanos?…).
Se a raça ou etnia é usada para investigar dados epidemiológicos, há que se considerar se os termos usados descrevem as pessoas conforme sua raça e etnia realmente ou conforme o lugar onde vivem. Por exemplo: a incidência de câncer do estômago entre japoneses vivendo no Japão é maior do que a dos japoneses vivendo nos Estados Unidos. Assim, para as variáveis ligadas ao tema “câncer e hábitos dietéticos”, o que importa não é a origem étnica somente, mas a localização geográfica e as influências do local nos hábitos do indivíduo. Em ortopedia, talvez altura e peso tenham maior relevância do que a pigmentação da pele. Exercício e transporte público podem ser cruciais para o tratamento de doenças articulares, por exemplo, mais do que a origem étnica. E a percepção a respeito de saúde e doença talvez importe mais para a avaliação da dor e qualidade de vida do que os olhos puxados do japonês que suporta essa dor.
Algumas orientações, entretanto, já são consenso entre os editores e muitos pesquisadores e podem ser úteis na hora de planejar o projeto de pesquisa e de redigi-lo:
– a escolha de termos “anti-racistas” pode ser contraproducente: nem todo negro é “afro-americano”, nem muito menos “afro-norte-americano”. Muitos negros têm origem caribenha, mesmo que seus antepassados tenham tido origem africana. E muitos negros vivendo no Brasil pode, sim, ter origem direta (pai, avô) africana, e de diferentes nações, cultural e socialmente definidas, africanas. “Negro” ou “preto” ou “de cor” indicam cor da pele, não raça nem etnia. E “o quanto” negro é outra questão vaga, pois pode-se agrupar, num mesmo resultado clínico, negros, mulatos (claros e escuros), “pardos” e até brancos que pensam ser negros por terem pais negros ou mulatos…
– cuidado com o uso dos termos “raça” e “etnia” como definidores de variáveis: se o autor do trabalho descreve claramente como coletou o dado, a interpretação dos resultados fica mais transparente. “Raça” já não faz mais sentido geneticamente, enquanto “origem étnica” pode ser um dado mais sensível para diferenciar grupos, posto que traz componentes culturais e sociais, incluindo dieta, hábitos sexuais e de fumo. “Raça” mostra pessoas que “se parecem” ou não visualmente, enquanto “origem étnica” revela a herança cultural, social e até genética do indivíduo (judeus asquenazes e sefaradis são todos judeus, e “brancos”, mas com diferentes incidências para certas doenças genéticas, por exemplo, por outro lado a China é um dos países em que mais se fuma no mundo, mas chineses e japoneses têm sido colocados na mesma “sacola” de “amarelos” nos estudos, embora tenham hábitos tabagistas diferentes…).
– descrever os critérios para coleta do dado: deve-se informar no manuscrito se o paciente foi questionado quanto à sua origem ou se o pesquisador fez essa classificação ao olhar para ele; e quando o sujeito foi questionado, se a pergunta foi aberta, para que ele respondesse como bem quisesse, ou se lhe foram dadas alternativas fechadas, e quais foram elas (afinal, “hispânico” pode não fazer sentido para um brasileiro, assim como “mulato” pode não ser uma alternativa para um chileno).
– descrever as razões para o estudo desse dado: em dermatologia, o nível de pigmentação da pele pode ser crucial na definição de algumas doenças. Mas em ortopedia, por que anotar a cor da pele? Qual a hipótese em que se baseia o estudo dessa variável? Há evidência científica de boa qualidade mostrando que a cor está relacionada com esta ou aquela afecção ou resposta a tratamento? No que a raça ou mesmo a etnia podem ser relevantes para o estudo? Definir isso no projeto de pesquisa e, mais adiante, na redação do manuscrito, é muito importante para a correta interpretação dos resultados. Esta é uma recomendação do Comitê Internacional de Editores de Revistas Biomédicas (ICMJE): “Quando os autores usam variáveis como raça ou etnia, devem definir como mediram essas variáveis e justificar sua relevância”.
Para ler mais:
Winker MA. Measuring race and ethnicity: why and how? Jama 2004;292:1612-4. Disponível em:
http://jama.ama-assn.org/cgi/content/full/292/13/1612. Acessado em 18/03/2009.
World Association of Medical Editors. Race and ethnicity: how do we describe people? Disponível em: http://www.wame.org/wame-listserve-discussions/race-and-ethnicity-how-to-we-describe-people. Acessado em 18/03/2009.
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http://www.nature.com/bdj/journal/v186/n10/full/4800147a.html. Acessado em 18/03/2009.
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