Estudos clínicos em cirurgia: um especial desafio
A prática da medicina tem, nos últimos anos, procurado se basear nas evidências de melhor qualidade que surgem de estudos clínicos “randomizados” e de metanálises. Porém, a realização desses estudos clínicos prospectivos na área da cirurgia é ainda um especial desafio: menos de 5% dos artigos publicados em revistas de cirurgia são estudos clínicos randomizados, o que mostra que esse paradigma ainda não foi incorporado à área cirúrgica.
Enquanto na área farmacológica os estudos clínicos aleatórios são a regra, em cirurgia, ainda prevalece o desenho retrospectivo ¾ a mentalidade é “vamos ver o que tem acontecido”, mais do que “vamos testar o que pode acontecer”. São assim os relatos de casos, os estudos longitudinais comparativos e as grandes séries de casos, de um único cirurgião ou uma única equipe ¾ e todos freqüentemente competindo entre si quanto ao tamanho da casuística.
A publicação desses relatos com freqüência está mais baseada na respeitabilidade do autor no meio do que no rigor da investigação científica ¾ mais facilmente atribuído aos estudos clínicos randomizados. Gerações de cirurgiões são formadas debaixo da tutoria dos grandes especialistas, cuja autoridade é difícil de questionar, e a própria indicação de um procedimento cirúrgico envolve uma mentalidade prática, uma tomada de decisão muitas vezes urgente (para condições agudas) no benefício do paciente, à beira do leito.
Ainda que o desenho do estudo clínico randomizado seja hoje considerado o menos sujeito a vieses e o que promove a produção de evidências de melhor qualidade, há quem defenda a disseminação dessas observações isoladas ¾ os relatos de casos e de séries de casos ¾, mesmo contendo vieses, pois elas podem, no final das contas, inspirar novas idéias de novos estudos… prospectivos. De fato, em cirurgia, a realização de estudos clínicos randomizados a respeito de várias técnicas só ocorreu depois que essas mesmas técnicas já haviam se tornado tradição nos centros, e foram repetidamente relatadas em diferentes locais.
A produção do conhecimento em ciência envolve alguns passos básicos: a idéia, que surge de uma crença ou de uma observação casual, “anedotal”, ou mesmo do desenvolvimento de um pensamento, depois a elaboração da hipótese, o teste dessa hipótese por meio da coleta de dados e sua aplicação na prática. No desenho retrospectivo de estudos, a aplicação da intervenção foi decidida pelo cirurgião, de acordo com seu julgamento do que é o melhor tratamento disponível para seu paciente individualmente, e, pelo menos teoricamente, pelo princípio de não causar dano (non nocere, a não-maleficência).
Já no desenho prospectivo e randomizado, esse mesmo cirurgião perde o poder de designar este ou aquele tratamento para seu paciente específico, e o arrola aleatoriamente para um grupo que poderá obter melhor ou pior resultado. O desígnio do tratamento passa então para as mãos do acaso: tanto um quanto outro grupo terão as mesmas chances de receber o melhor tratamento, seja ele qual for. A escolha não é mais pessoal, do cirurgião, e nem mesmo do paciente, mas do protocolo.
Há quem argumente contra a medicina baseada em evidências postulando que o que é bom para um grupo (frequentemente heterogêneo) de pacientes pode não ser bom para o sr. João da Silva, sentado na sala de espera para que seu médico decida se deve ou não ser operado, com esta ou aquela técnica. Aparentemente, a cirurgia vai precisar dialogar com a medicina baseada em evidências numa via de mão dupla: por um lado, a experiência clínica do cirurgião e seus conhecimentos sobre patofisiologia podem pesar na balança na hora da tomada de decisão. Por outro, o cirurgião precisa estar cada vez mais aberto a questionamentos, impostos pelos estudos clínicos randomizados, a respeito da real eficácia dos procedimentos comparados com placebo, ou comparados com outras modalidades de tratamento (inclusive as não-cirúrgicas). Assim, ao mesmo tempo em que a experiência clínica questiona a medicina baseada em evidências, também as evidências podem ser colocadas no contexto da expertise pessoal.
Quais os motivos das dificuldades de se realizar estudos clínicos randomizados numa área predominantemente cirúrgica como a ortopedia? Confira a abordagem desses problemas na próxima Dica do Centro de Estudos!
Para ler mais:
Cook JA. The challenges faced in de design, conduct and analysis of RCTs. Trials 2009;10:9.
Byer A. The practical and ethical defects of surgical randomized prospective trials. J Med Ethics 1983;9:90-3.
McCulloch P, Sasako M, Lovett B, Griffin D. Randomised trials in surgery: problems and possible solutions. BMJ 2002;324:1448-51.
Stirrat GM. Ethics and evidence based surgery. J Med Ethics 2004:30:160-5.