“Mas todo mundo faz assim”! — E daí?

“Mas todo mundo faz assim”! — E daí?

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Muitas vezes quando sugerimos que sejam feitas certas modificações nos artigos científicos, para esclarecer, acrescentar detalhes ou simplesmente tornar a leitura mais fácil, ouvimos esta justificativa de nossos clientes: “Mas todo mundo publica assim”.

Muitos pesquisadores realmente publicam artigos incompletos, difíceis de compreender, cheios de jargão. Às vezes fazem isso para esconder escolhas metodológicas questionáveis, e outras vezes é somente para “seguir a moda”. Temos visto até mesmo orientadores de pós-graduação que sugerem que seus alunos usem linguagem rebuscada e difícil para soar “mais sério”.

Os melhores centros de pesquisa do mundo já acordaram para o fato de que precisam tornar a ciência mais aberta e acessível para todos. “Aberta” significa “aberta ao escrutínio”, transparente. “Acessível” significa, por um lado, escolher publicações que não cobram do leitor pela visualização (“open access”) e, também, em linguagem que não especialistas possam compreender. 

Abaixo estão algumas situações em que pequenas mudanças, fáceis de fazer, têm enorme efeito na visibilidade e consequentemente no uso das publicações em saúde. Temos reiterado essas noções junto a nossos clientes, mesmo enfrentando a velha desculpa do “mas todo mundo faz assim”. Na nossa visão, já passou da hora de iniciar mudanças e tornar o acesso à ciência mais democrático. 

Abreviações e siglas

Um ranço da época em que as publicações científicas eram impressas, e o espaço era milimetricamente limitado faz com que muita gente imagine que economizar algumas letras faz diferença. A realidade atual é que… não. A contagem de limitação de tamanho de texto em artigos e resumos hoje é feita em número de palavras, não de letras. Portanto, abreviar “eritropoietina” como “EP” é só uma maneira de tornar a leitura e a compreensão de um texto mais difícil… porque não ajuda a reduzir a contagem.

Com siglas pode ser um pouco diferente, já que elas de fato podem reduzir um pouquinho o número de palavras. Mas ainda assim, muita confusão pode ser criada por causa da “moda das siglas”. Embora haja alguns termos que são mais conhecidos como siglas (“DNA”) do que pelos nomes reais (ácido desoxiribonucleico), criar novas siglas pode gerar enorme confusão na vida de leitores comuns e autores de revisões sistemáticas. “EPO”, por exemplo, pode significar a substância “eritropoietina” citada acima mas também o gene que codifica a proteína. 

Portanto, recomendamos:

– não crie novas siglas;

– sempre que possível, prefira escrever os nomes por extenso nos textos, mesmo que cite a sigla uma vez para facilitar que os robôs identifiquem seu artigo nas buscas;

– se usar siglas, explicite o extenso pelo menos uma vez no texto ou, melhor ainda, em cada seção. Seu leitor não tem obrigação de saber nem de lembrar ou de interromper a leitura para consultar o significado;

– em resumos, usar a sigla pode “economizar” palavras: ainda assim, é essencial definir no primeiro uso.

Técnicas e métodos

“Não preciso explicar como se faz, esta é uma técnica consagrada”. Esta “desculpa” para não descrever detalhadamente técnicas de análise ou tratamento utilizadas nos artigos não é pertinente. Motivos:

– ainda que existam “técnicas consagradas”, muitas vezes os pesquisadores promovem pequenas mudanças ou melhorias em procedimentos que interferem nos resultados. Se foi utilizada a técnica exatamente como criada e publicada, a referência deve ser citada;

– não são somente especialistas experientes na técnica que vão ler o artigo científico: autores de revisões sistemáticas precisam ter certeza de que a técnica é comparável a de outros trabalhos; gestores também precisam tomar decisão com base nesses detalhes; alunos de graduação e pós-graduação não estão necessariamente habituados aos detalhes; e pacientes e leigos também têm direito à informação a respeito do que está sendo feito com sua saúde e o dinheiro de seus impostos. Convenci?

Como você tratou?

Assim como para técnicas de análise é importante fornecer detalhes, também é crucial descrever minuciosamente como um tratamento foi planejado e oferecido em estudos clínicos. E isto vale para intervenções em saúde de qualquer natureza: medicamentos ou conjunto deles, modificações de posologia ou dosagem, cirurgias, procedimentos fisioterápicos e psicológicos ou intervenções sociais. Em qualquer desses casos, deve-se pressupor que o leitor não tem a menor ideia de como reproduzir o tratamento, portanto precisa de detalhes sobre materiais empregados, clínicos ou outras pessoas envolvidas com a aplicação, e o treinamento que receberam, momentos de tratamento, cegamento do paciente e custo. E tudo isso vale também para os placebos utilizados, que devem ser descritos quanto ao seu formato, aspecto, gosto, cheiro, peso e toda e qualquer característica importante para diferenciá-lo do tratamento em estudo.

Quer saber mais? Veja este roteiro para redação de artigos científicos (“reporting guideline”) dedicado somente a intervenções e placebos, o TIDieR (website em inglês): http://www.tidierguide.org.

Patricia Logullo é doutora e meta-pesquisadora no Centre for Statistics in Medicine (CSM) na University of Oxford, Reino Unido e medical writer certificada pela International Society of Medical Publication Professionals (ISMPP). Além do Doutorado em Saúde Baseada em Evidências (pela UNIFESP), também é mestre em Ciências da Saúde (pela FMUSP) e Jornalista Científica (pela UNICAMP).

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